- Chris Baraniuk
- Role,Da BBC Future
- 12 outubro 2023
A enorme torre no jardim revela qual é o hobby de Todd Baker. Repleta de antenas, a estrutura de 30 metros é mais alta do que diversas árvores adultas da região.
Baker é vendedor de correias transportadoras industriais em Indiana, nos Estados Unidos. Ele se identifica não só pelo seu nome, mas também pelo seu indicativo – aquela curta sequência de letras e números que ele usa quando se comunica pelo rádio: W1TOD.
Todd Baker é membro da comunidade dos radioamadores.
Ele conta que já participou de todas as diferentes classes de radioamadores – incluindo a “faixa do cidadão” (um sistema de comunicações individual de curta distância via rádio), que ele vem usando ao longo dos anos. “As comunicações eram simplesmente incríveis para mim.”
Agora, ele também se dedica à ciência cidadã.
No próximo sábado, 14 de outubro, ele e centenas de outros radioamadores irão lotar as frequências de rádio durante um eclipse solar anular que será observado no continente americano, Brasil incluído. E eles farão o mesmo em abril, quando um eclipse solar total será visível da Terra Nova, no Canadá, até o México. Por quê?
Os eclipses solares afetam as ondas de rádio. Baker pretende participar de um enorme experimento destinado a monitorar como os eventos cósmicos influenciam as transmissões.
Equipamento de radioamador a ser usado para transmissão no momento do eclipse, na Universidade de Scranton, nos Estados Unidos
No seu terreno de três hectares à beira de uma autoestrada ao sul de Indianápolis, a coleção de antenas de Baker, voltadas para diferentes direções, permite que ele transmita para todo o território americano e para locais distantes no exterior.
Sua voz já foi ouvida no outro lado do mundo. Ele já conversou com colegas radioamadores da Europa e até da Nova Zelândia, a 13 mil quilômetros de distância.
Uma das antenas do jardim de Baker tem um ângulo especial, segundo ele. Ela transmite um sinal de rádio que, inicialmente, segue a pouca altura do solo. Mas, em dado momento, aquele mesmo sinal toma a direção do espaço sideral.
“Quando atinge a ionosfera, o sinal dá um salto”, segundo ele. “Ele retorna.”
Este fenômeno – da reflexão intencional das ondas de rádio em algumas das camadas superiores da atmosfera – amplia enormemente a distância em que os operadores de rádio podem se comunicar. É o chamado efeito das “ondas ionosféricas”, responsável pela primeira transmissão de rádio através do Oceano Atlântico, em 1901.
Este efeito faz com que as ondas ionosféricas superem as dificuldades impostas pela curvatura da Terra. As transmissões de rádio podem viajar em ziguezague, para cima e para baixo, refletidas entre a superfície do planeta e a ionosfera, a uma altitude de cerca de 80 a 650 km.
É possível dizer que a voz de uma pessoa, emitida por ondas eletromagnéticas, toca literalmente o céu durante as transmissões a longa distância que fazem uso deste tipo de propagação.
A ionosfera, essa desconhecida
“Poder captar sinais de rádio do outro lado da Terra, realmente, é extraordinário”, afirma Cathryn Mitchell, professora de ciências do rádio da Universidade de Bath, no Reino Unido.
O que realmente surpreende é que o efeito das ondas ionosféricas não é estável – e os cientistas, até hoje, não entendem completamente por quê.
A ionosfera é estranha. Ela se move, flutua, expande e se contrai. Está longe de ser uniforme.
Mitchell descreve que, às vezes, ela está repleta de ondas que se rompem durante o nascer e o pôr do sol, quase como se atirássemos uma pedra na água de um lago.
A presença ou ausência da luz solar é um dos motivos dessas variações.
Durante o dia, a ionosfera fica mais espessa porque a luz do Sol atinge os gases atmosféricos e os ioniza, produzindo elétrons. À noite, as colisões diminuem e a camada inferior da ionosfera desaparece.
Essa diluição da ionosfera durante a noite permite que as ondas de rádio viajem por distâncias muito maiores. Elas conseguem atingir altitudes maiores antes que os elétrons as direcionem de volta para a Terra. É por isso que, há muito tempo, as pessoas sintonizam emissoras de rádio distantes no período noturno.
As peculiaridades da ionosfera exigem pesquisas em larga escala. E um eclipse oferece a oportunidade perfeita para reunir muitas pessoas e testar nossa compreensão sobre o que ocorre com a ionosfera durante suas flutuações – e, o que é melhor, em horário conveniente: durante o dia.
Os eclipses não afetam a ionização da mesma forma que a noite terrestre. A sombra lançada pela Lua é específica – um ponto que viaja rapidamente por toda a superfície da Terra.
Por isso, um eclipse pode ter efeitos inesperados na ionosfera, que os cientistas estão ansiosos para observar.
Para colaborar com os estudos, membros da comunidade de radioamadores se inscreveram em um coletivo de ciência cidadã chamado HamSCI.
No momento em que ocorrerem os dois próximos eclipses, centenas de voluntários começarão a transmitir sinais de rádio. Eles irão rastrear suas experiências e compartilhar os dados com os cientistas. Baker é um desses voluntários.
“Eles querem saber como os sinais vem e vão”, explica ele. “Em nenhum outro momento, você tem a capacidade de ‘desligar’ o Sol e ligá-lo em seguida.”
Depressões e protuberâncias
O experimento é liderado pelo físico espacial e engenheiro elétrico Nathaniel Frissell, da Universidade de Scranton, na Pensilvânia (Estados Unidos). Ele é o fundador do coletivo HamSCI.
Em entrevista, Frissell explica por que ainda há muito o que aprender sobre a ionosfera. Ele mostra uma animação da ionosfera, ilustrada como uma camada curva e difusa, envolvendo ordenadamente a Terra abaixo dela.
“Você vê como esta ionosfera é estável? Mas, na vida real, a ionosfera não é tão estável assim”, explica ele. Existem depressões e protuberâncias temporárias, na falta de melhor definição, que os cientistas ainda não conseguem prever perfeitamente.
Durante os próximos eclipses, Frissell – que também é radioamador e seu prefixo é W2NAF – irá reunir dados de radioamadores individuais, voluntários que pretendem usar equipamentos transmissores de alta sensibilidade durante os eventos e bancos de dados públicos que acompanham a atividade pública no rádio, entre outras fontes.
Frissell destaca que um experimento nesta escala seria simplesmente impossível apenas com a instrumentação acadêmica padrão, já que não existem instrumentos suficientes em uma área de tamanho satisfatório.
Um experimento similar ocorreu durante um eclipse solar total observado nos Estados Unidos em 2017. Baker também participou daquele estudo e guarda o recorte do jornal local com sua fotografia.
O cientista Nathaniel Frissell comanda o projeto HamSCI. Ele aparece na foto com duas de suas alunas, Veronica Romanek e Simal Sami
Oceano em mutação
É importante conseguir compreender a ionosfera. Durante operações militares ou de emergência, por exemplo, comunicações radiofônicas direcionadas com precisão podem fazer a diferença entre a vida e a morte.
É fundamental que os operadores de rádio saibam como melhor configurar suas transmissões para conseguir boa recepção.
Além disso, as variações ionosféricas, às vezes, afetam os satélites, segundo Ruth Bamford, do instituto RAL Space, sediado no Laboratório Rutherford Appleton. O laboratório faz parte do Conselho de Instalações Científicas e Tecnológicas do Reino Unido.
As erupções solares, por exemplo, expandem a ionosfera terrestre, o que aumenta o arrasto atmosférico sobre os satélites em órbita da Terra. Isso pode fazer com que os satélites precisem ser impulsionados de volta para uma altitude maior, evitando que eles sejam lançados em direção ao solo.
Fazer as ondas de rádio serem refletidas pela ionosfera é como investigar um imenso oceano de matéria etérea em constante mutação.
“É algo muito difícil de fazer”, segundo Bamford. “Você tem um espelho lá em cima que muda de acordo com o Sol.”
Bamford valoriza os voluntários do rádio. Ela mesma participou de um evento similar em 1999, durante um raro eclipse solar total observado no Reino Unido (o próximo só ocorrerá em 2090).
Naquele ano, voluntários acompanharam as variações de potência dos sinais de rádio durante o eclipse e muitos registraram picos significativos. Os resultados revelaram como as transmissões de rádio podem viajar rapidamente por distâncias muito maiores durante o eclipse, em comparação com o habitual no mesmo horário do dia.
Como exemplo, Bamford e seus colegas pediram a membros do público que sintonizassem seus rádios domésticos na frequência de uma rádio espanhola.
Aquela emissora, normalmente, não é ouvida durante o dia em rádios domésticos no Reino Unido, mas centenas de britânicos relataram terem ouvido o sinal surgir e desaparecer em seguida, no início e no final do eclipse.
Considerando como o nosso conhecimento da ionosfera é imperfeito, Ruth Bamford destaca que pode haver novas surpresas nos próximos eclipses.
“O radioamadorismo é um ótimo veículo para isso”, defende Michelle Thompson, diretora-executiva do Open Research Institute, uma ONG envolvida na pesquisa e desenvolvimento do radioamadorismo. O indicativo de Thompson é W5NYV.
Ela afirma que os operadores de rádio que transmitirem durante os eclipses serão uma espécie de “receptor distribuído” gigante. E a possibilidade de ampliar nosso conhecimento sobre as variações da ionosfera aumenta a cada experimento, à medida que avança a tecnologia dos equipamentos de rádio.
O eclipse de sábado será anular (esq.), ou seja, a Lua não irá cobrir totalmente o Sol. Mas, em abril de 2024, o continente americano irá observar um eclipse total (dir.)
Todd Baker está ansioso para ver os resultados dos próximos eclipses. Ele indica que os dados poderão aumentar sua capacidade de se comunicar com sucesso pelo rádio em certos momentos do dia.
Muitos radioamadores têm interesse em aperfeiçoar suas técnicas. Baker gosta de estabelecer desafios para si próprio, como emitir a longa distância com potência muito baixa ou lançar uma antena portátil sobre uma árvore e transmitir em locais paradisíacos nas férias.
Aqui, parte da atração é a incerteza sobre o que irá acontecer em seguida.
É fascinante ligar o rádio, ver seu sinal refletido pela ionosfera, percorrer enormes distâncias e atingir completos estranhos. É completamente diferente de digitar uma mensagem no telefone celular para um dos seus contatos.
Para Michelle Thompson, esta “é uma comunicação não programada, totalmente insólita, que aproveita uma oportunidade”. Suas comunicações já criaram muitas amizades e até a fizeram apresentar suas pesquisas em uma conferência no Japão.
Ela explica que, ao contrário de pegar um telefone, a atividade de radioamador se parece mais com sair em um barco para o mar aberto. Você precisa entender e prestar atenção nas grandes forças da natureza, no clima e até na turbulência invisível da atmosfera, para chegar ao seu destino.
“É uma aventura a cada dia”, ela conta. “Você nunca sabe com quem irá conseguir falar.”
As regras dos radioamadores
Para encontrar outros radioamadores, existem sites que servem de “lista telefônica”, como QRZ.com.
Depois do contato, os operadores costumam trocar cartões QSL. Similares a cartões postais, eles identificam as estações e registram a realização do contato. QSL é um código que significa “confirmo a recepção da sua transmissão”.
O radioamador Todd Baker encontrou muitas personalidades nas ondas do rádio, desde “preppers” do apocalipse (pessoas que estão se preparando para o fim do mundo, criando abrigos e estocando mantimentos) até cidadãos ucranianos em meio à guerra com a Rússia.
Uma das regras não oficiais do radioamadorismo é evitar falar de política e religião durante os contatos.
“Algumas pessoas falam, mas eu tento evitar”, afirma Baker. “Se você concorda ou discorda, digamos, do presidente ou do vice-presidente dos Estados Unidos, não deixa de ser um cargo que deve ser respeitado.”
Nem tudo é bate-papo no radioamadorismo. Existem radioamadores voluntários que oferecem apoio às autoridades locais durante emergências. Durante os eclipses, este grupo irá acompanhar problemas de trânsito, falhas de telefones celulares e outros contratempos.
A atividade de radioamador parece estar em declínio em muitas partes do mundo, como no Reino Unido e na Austrália.
A pandemia de covid-19 promoveu o renascimento do radioamadorismo em países como o Japão. Mas, nos Estados Unidos, o panorama não é positivo, segundo Michelle Thompson, que estudou a demografia dos radioamadores daquele país. “Estamos à deriva”, segundo ela.
Thompson indica que o número de licenças de radioamadores nos diferentes Estados americanos atualmente é estável ou apresenta leve redução. E o hobby passou a ser menos diversificado, pelo menos em termos de representação de gêneros: “estamos com algumas dificuldades por aqui. O rádio parece estar subestimado”.
No Brasil, o serviço de radioamador é regulamentado pela Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel). A organização que detém a função de congregar e representar os radioamadores é a Liga de Amadores Brasileiros de Rádio Emissão (Labre), enquanto a Rede Nacional de Emergência de Radioamadores (Rener) reúne os voluntários que prestam serviços em situações de emergência.
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